Em seu livro, Americana desmitifica o tabu da morte
Americana desmitifica o tabu da morte em relato do trabalho em crematório
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Ilustração
do livro "Confissões do Crematório"
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A
norte-americana Caitlin Doughty abraçou uma missão: desmitificar o
tabu da morte. Com seu canal no YouTube, o "Ask a Mortician",
ela apresenta vídeos curiosos sobre a indústria da morte usando
humor afiado e sagacidade. E usa a escrita para apresentar o leitor a
um setor pouco conhecido do público em geral –os bastidores da
morte.
Seu
livro, "Confissões do Crematório" (ed. Darkside, 2016),
lançado recentemente no Brasil, é uma compilação de casos reais
vividos durante seus primeiros seis anos trabalhando em um crematório
nos Estados Unidos.
Doughty
não pisa em ovos. Ela destrincha os tópicos mais mórbidos de forma
bem direta. Conta sobre um bebê que precisou raspar a cabeça (pois
a família queria guardar o cabelo de lembrança), e atividades como
lubrificar uma mão para tirar a aliança, remover marca-passos para
não explodirem no forno crematório, moer ossos em um liquidificador
de metal, inserir tampas espinhosas embaixo das pálpebras para os
olhos ficarem fechados e barbear mortos. São ações que incitam um
dilema comum aos trabalhadores desse ramo: "Eu não tinha
certeza se Byron era um 'ser' ou uma 'coisa' (um corpo), mas parecia
que eu devia ao menos saber o nome dele para executar um procedimento
tão íntimo", escreve.
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A
autora americana Caitlin Dought, de "Confissões do Crematório"
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A
autora oferece uma revisão histórica da morte, como o surgimento do
embalsamamento, da cremação, dos cemitérios modernos, a
higienização do processo do morrer com a transferência dos
moribundos das casas aos hospitais, os ritos fúnebres nas diversas
culturas –a tribo brasileira Wari que comia seus mortos, os
budistas tibetanos que deixam os corpos ao ar livre para serem
devorados por entidades celestiais (os urubus) e o costume fúnebre
da ilha de Java, na Indonésia, de abraçar e lavar cadáveres.
Ela
relaciona o tabu da morte com o do sexo: "Enquanto o sexo e a
sexualidade eram o tabu central do período vitoriano, a morte e o
morrer são o tabu do mundo moderno". E cita o antropólogo
britânico Geoffrey Gorer, "nossos bisavós ouviram que os bebês
eram encontrados embaixo de arbustos de groelha ou de repolhos;
nossos filhos provavelmente vão ouvir que os que faleceram (...)
viram flores ou descansam em lindos jardins".
O
envolvimento profissional de Doughty com a morte surgiu da tentativa
de superação de um trauma de infância. Aos oito anos, ela
presenciou uma garotinha cair para fora da escada rolante de um
shopping center.
Doughty
diz ter se traumatizado por nunca ter tido contato com a morte antes
desse evento. Após o trabalho no crematório, ela cursou uma
faculdade funerária em São Francisco e chegou à conclusão de que
"quanto mais eu aprendia sobre a morte e a indústria da morte,
mais a ideia de outra pessoa cuidando dos cadáveres da minha família
me apavorava". Essa consciência a estimulou a fundar sua
própria casa funerária, a "Undertaking LA".
CONSCIÊNCIA
FUNERÁRIA
Em
entrevista à Folha, Doughty conta que a "Undertaking LA"
é a única casa funerária sem fins lucrativos de Los Angeles, e
afirma se preocupar em envolver as famílias nos cuidados com seus
mortos. Ela organiza, por exemplo, workshops para os clientes saberem
o que exatamente é feito com os cadáveres.
"Eu
não concordo com os funcionários do ramo (tanatopraxistas,
patologistas, funcionários do crematório) somente lidarem com os
corpos mas nunca com suas famílias. Se você ignorar os vivos, a
família enlutada, você pode perder de vista o fato de que cada
corpo representa um ser humano com uma história", conta.
Doughty
relaciona os problemas da sociedade moderna com uma cultura que ela
considera negar a morte: "Se não podemos aceitar que vamos
morrer, não vamos aceitar que estamos matando o planeta. Não iremos
aceitar que estamos destruindo espécies. E acabamos admitindo certos
atos de guerra, terror e violência. Se a morte não é real para
nós, vamos permitir que essas coisas continuem acontecendo".
Agora,
Doughty trabalha em seu próximo livro: sobre como revolucionar o
setor funerário e define uma epígrafe para si: "Ela morreu
fazendo o que amava: a morte".
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