Não ao Silêncio no caso de estupro.
Como silenciamos o estupro
Todo
mundo concorda que estupro é um dos piores crimes que existem. Ainda
assim, 99% dos agressores sexuais estão soltos - e eles não são
quem você imagina. Culpa de uma tradição milenar: o nosso hábito
de abafar a violência sexual a qualquer custo. Entenda aqui por que
é tão difícil falar de estupro.
Luci
era uma donzela de 13 anos que, no século X, vivia em um importante
vilarejo com seus pais. Certo dia de verão, ela saiu para ir à
feira com uma amiga quando sentiu uma vontade enorme de ir ao
banheiro. Sem ter aonde ir, entrou no primeiro casebre do caminho e
resolveu fazer xixi por lá mesmo. Foi quando um homem de 35 anos a
encontrou e decidiu que a tomaria à força. O rapaz a prendeu dentro
da cabana e a violentou: foi tanta brutalidade que Luci ficou toda
ensanguentada e com as vestes rasgadas. Quando a menina chegou em
casa, seu pai se encheu de desgosto - não podia acreditar que a
filha não era mais virgem. Ainda assim, a família decidiu buscar
justiça e foi falar com o mandatário local para mandar prender o
criminoso. O oficial logo encontrou o acusado que, depois de muito
tempo, acabou confessando o crime. Assim, de acordo com a lei da
época, o oficial apresentou duas opções para a família: ou o
homem ia preso ou assumia a menina e se casava com Luci para resgatar
sua "honra". Como o pai da menina não queria mais saber
daquela filha impura, mandou ela se casar com seu estuprador. Foi o
que aconteceu. No dia seguinte, Luci se mudou para a cabana onde foi
violentada, onde passou 11 anos ao lado de seu monstruoso marido. Ele
a engravidou por cinco vezes e bateu nela todos os dias enquanto
permaneceram casados.
A
história seria apenas mais um terrível conto medieval, se eu não
tivesse esquecido um "X" na data lá em cima. O caso de
Luci não aconteceu no século X, mas no século XX - em 1982, para
ser exato. O importante vilarejo era a cidade de Guarulhos, em São
Paulo, e Luci é Lucineide Souza Santos, uma cabeleireira de 46 anos
que, hoje, está separada de seu estuprador. (E, se você ficou na
dúvida: sim, até 2002 existia na lei brasileira a possibilidade de
o estuprador não cumprir pena caso ele se casasse com sua vítima.)
egundo
o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos
cerca de 50 mil pessoas são estupradas no Brasil. Esses são os
números oficiais, obtidos a partir da papelada formal. Mas eles não
correspondem à realidade. O estupro é um dos crimes mais
subnotificados que existem e o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada estima que os dados oficiais representem apenas 10% dos
casos ocorridos. Ou seja, o verdadeiro número de pessoas estupradas
todos os anos no Brasil é mais de meio milhão. Nos EUA, onde
existem dados longitudinais, de acordo com o Center for Disease
Control and Prevention, uma em cinco mulheres vai ser estuprada ao
longo da vida.
Os
casos registrados são baixos porque existe um comportamento
persistente que cerca o estupro: o silêncio. Vítimas não
denunciam seus agressores, policiais não investigam as acusações,
famílias ignoram os pedidos de ajuda, instituições não entregam
seus criminosos - esses mecanismos invisíveis fazem com que 90% da
violência sexual jamais seja conhecida por ninguém. E isso, sim, é
um crime ainda maior do que a soma de cada caso.
Apesar
de entendermos o estupro como um dos piores crimes que
podem acontecer a alguém - segundo pesquisas sobre percepção de
crueldade, ele só perde para o assassinato -, somos estranhamente
incrédulos para acreditar que ele realmente acontece. O estupro é
o único crime no qual a vítima é julgada junto com o criminoso.
Imagine que roubaram o seu celular e você decide fazer um B.O. Agora
imagine que o delegado que pegou o seu caso resolve perguntar onde
você foi assaltado, que horas eram e se você era conhecido por
trocar de aparelho o tempo todo. Depois ele pergunta se você tem
certeza de que o assalto realmente aconteceu ou se você não deu o
celular ao bandido por vontade própria. Se você então explica que
o roubo foi de madrugada e depois de você ter tomado umas cervejas,
o delegado decide - por conta própria - que não houve crime algum:
você estava na rua e bêbado, quem pode garantir que você está
falando a verdade? Ou então, pior, quem disse que você não queria
ter sido assaltado?
Isso
acontece com quem foi estuprado o tempo todo. Mulheres relatam como
são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas
histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde
ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia
ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria
fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas
perguntas podem vir de qualquer um. Foi o que aconteceu com a menina
Maria*, por exemplo, estuprada pelo avô aos 14 anos. Quando ela
resolveu pedir ajuda à avó, ouviu que a culpa havia sido dela.
"Você saiu do banho de toalha na frente do seu avô, que não
sabe controlar os instintos." O avô seguiu normalmente a vida,
e Maria viveu com a culpa de quase ter desestruturado toda a sua
família, como insinuou a avó. Comentários assim surgem de amigos,
familiares, policiais, médicos, advogados - e até de juízes. Todas
as instâncias trabalham para abafar o crime e jogar o assunto para
baixo do tapete. Todas mesmo.
O estupro do poder
O
menino de 9 anos começou a chorar quando contou o que havia
acontecido com ele. Alguns dias antes, enquanto procurava por comida
junto com um amiguinho, encontrou dois adultos que falaram que tinham
alguns alimentos sobrando e que poderiam dividir um pouco com eles -
em troca de um pequeno favor. O favor? Que os meninos fizessem sexo
oral nos adultos. Sem comer há dias, as crianças acabaram cedendo.
Depois de ganhar a comida, traumatizados, os pequenos não
conseguiram voltar para casa e acabaram abandonando seus lares. A
história acima aconteceu em 2014, os meninos de 9 anos eram
moradores de um campo de refugiados na República Centro-Africana e
os adultos que os extorquiram por comida eram soldados franceses de
uma força de paz da ONU. E a história não para por aí: segundo um
relatório interno da própria Organização, outras 11 crianças no
país africano foram estupradas analmente ou forçadas a fazer sexo
oral em membros da força de paz, tudo em troca de comida.
Quase
que pior que as histórias de estupro foi o que a ONU fez
com o relatório que continha essas denúncias. O documento foi
encaminhado de funcionário a funcionário a funcionário - sem que
ninguém tomasse nenhuma providência. Repetidamente, o caso foi
sendo abafado. Foi apenas quando a papelada caiu nas mãos de Anders
Kompass, um oficial de direitos humanos da ONU na Suíça, que alguém
agiu. Kompass vazou as informações para o governo francês, que
finalmente abriu uma investigação na República Centro-Africana.
Aí, sim, a ONU se viu obrigada a tomar uma atitude: afastou Kompass
do cargo.
É
difícil achar no mundo uma grande instituição que não tenha
varrido para debaixo do tapete algum caso de estupro. Exércitos,
empresas, famílias, universidades e igrejas acobertam estupros
rotineiramente. A Igreja Católica foi apenas a mais famosa
organização religiosa a fazer isso quando bispos e padres foram
acusados de abusar sexualmente de crianças no começo dos anos 2000.
Durante muito tempo o Vaticano fingiu que não sabia de nada - e até
o papa Bento 16 foi acusado de olhar para o outro lado nos anos em
que liderou um departamento que analisava abusos dentro da Igreja. O
mesmo aconteceu com os Testemunhas de Jeová na Inglaterra, onde o
pastor Mark Sewell foi condenado por abusar de mulheres e crianças
ao longo de anos. E acontece também com igrejas evangélicas aqui no
Brasil, onde pastores de diversos Estados já foram acusados de
abusar de meninas durante supostos "tratamentos espirituais".
Não
são só as igrejas que adotam essa postura obscurantista. Nos
últimos meses, o foco dos escândalos sexuais tem sido as
universidades, brasileiras e gringas, que mal sabem onde enfiar a
cabeça diante de tantas alunas contando que foram violentadas dentro
das faculdades - mas já vamos chegar lá.
Outra
categoria muito eficiente em abafar casos de estupro é a
figura do "homem bem-sucedido". Basta ser uma personalidade
respeitada que dificilmente a denúncia de violência sexual vai
colar. Peguemos o caso de Dominique Strauss-Kahn, o diretor do FMI,
que foi acusado por uma camareira de hotel de ter enfiado o pênis em
sua boca, arrancado sua roupa e tentado penetrá-la. Apesar de
evidências de sêmen no uniforme da mulher, Strauss-Kahn negou a
violência. Logo, o caso contra ele enfraqueceu e a queixa foi
retirada por "falta de credibilidade da acusadora":
decidiram que ela havia mudado demais a sua história e que, graças
a um passado obscuro em seu país natal, a Guiné, ela não era de
confiança. Strauss-Kahn acabou renunciando ao cargo no FMI, mas não
foi condenado.
Diversas
outras figuras famosas também se viram envolvidas em acusações de
violência sexual, como os atores Bill Cosby e Arnold Schwarzenegger,
os atletas Mike Tyson e Kobe Bryant, e o diretor Woody Allen. O
argumento contra pessoas que denunciam celebridades é sempre o
mesmo: são indivíduos interesseiros, loucos por fama e dinheiro,
que merecem ser demonizados. (A moça que acusou Kobe Bryant, por
exemplo, recebeu 70 ameaças de morte.) Pode até ser que todas as
mulheres que acusam figurões realmente estejam mentindo (embora
pesquisas indiquem que as denúncias falsas de estupro mal
cheguem a 8%). Mas também pode ser que não. Na dúvida, as punidas
- por terem sua credibilidade questionada e pela falta de justiça -
acabam sendo as vítimas mesmo.
Quem
acoberta grandes instituições usa sempre o mesmo raciocínio: "não
podemos manchar a imagem de .... [insira aqui a sua entidade
favorita] pela denúncia de uma mísera... [insira aqui seu
xingamento favorito]". Quando finalmente algumas acusações de
pedofilia na Igreja Católica foram confirmadas, não restou ao papa
Bento 16 outra opção a não ser admitir que a prioridade do
Vaticano havia sido "uma preocupação equivocada com a
reputação da Igreja e a contenção de escândalos". A lógica
é perversa: comparam-se anos e anos de fama e respeitabilidade de
uma abstrata entidade com a dignidade de uma pessoa particular. Não
é de se estranhar que a pessoinha acabe levando a pior.
Perguntar ofende
Não
é fácil denunciar um estupro. É preciso ir à delegacia e
prestar depoimento para funcionários que nem sempre sabem lidar com
vítimas de violência sexual (não há nenhum tipo de treinamento
especial para isso aqui no Brasil) e que podem, sim, fazer as
perguntas e insinuações que nosso delegado fictício lá atrás
fez. Se quiser que o caso tenha continuidade no processo jurídico, a
vítima terá de ir ao IML fazer o exame médico (consultas feitas em
postos de saúde ou médicos particulares não têm validade legal).
O exame é constrangedor: o médico legista examina o corpo inteiro
da mulher em busca de fibras ou pelos que possam incriminar alguém,
além de vasculhar vagina, ânus e períneo por sinais de laceração,
feridas ou esperma. A mulher é apalpada, penetrada por instrumentos
e interrogada sobre detalhes do crime, apenas horas depois do
ocorrido.
Em
seguida, a agredida terá de torcer para que seu caso seja
encaminhado para os tribunais: quem decide isso são promotores e
juízes, e a maioria deles prefere dar continuidade apenas aos casos
que têm maior chance de serem provados nas cortes. Isso quer dizer
que, se não houver sinais de esperma, ou se a vítima não tiver
sido ameaçada por arma de fogo ou se ela não apresentar machucados
porque preferiu ficar imóvel e não apanhar do estuprador, as provas
ficam mais frágeis. Quem poderá garantir que a relação foi diante
de ameaça, afinal? Se a mulher conhecer o criminoso, então, as
chances de seu caso ser levado à frente caem drasticamente.
Primeiro, pelo medo de retaliação: muitas preferem nem fazer a
queixa para não serem perseguidas pelos seus agressores. E, segundo,
porque é quase impossível provar se houve ou não consentimento. Se
a vítima chegar à delegacia dizendo que foi estuprada por um
namorado, marido, ficante ou amigo, é quase certeiro que seu caso
não vá para frente.
Mesmo
se for parar no tribunal, a acusação corre o risco de se voltar
contra a mulher, como já vimos. "Os advogados podem usar
qualquer tipo de argumento para invalidar a vítima. Geralmente são
argumentos moralistas - e que funcionam", diz Ana Paula
Meirelles Lewin, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da
Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Não é à
toa, então, que 90% das mulheres desistam de denunciar o crime:
sabe-se lá o que advogados e procuradores vão inventar sobre ela.
O estupro acaba silenciado pela vergonha, uma arma
eficientíssima. E vergonha é a palavra-chave nesses casos.
"O estupro é um crime extremamente íntimo, uma
violação profunda, como pouquíssimas outras coisas são. Se as
pessoas que lidam com esses casos - médicos, advogados, policiais -
não tiverem respeito por essa violação, elas não vão conseguir
ajudar as mulheres", diz o médico Jefferson Drezett, que atende
vítimas de violência sexual no hospital Pérola Byington, em São
Paulo.
Meu malvado favorito
Fazia
uma tarde ensolarada de maio quando quatro adolescentes resolveram
sair de casa para tirar umas fotos panorâmicas de sua cidadezinha
natal. Mas elas deram azar: quando chegaram ao alto do morro,
encontraram cinco dos piores criminosos da cidade, completamente
drogados. Rendidas com uma arma, elas foram amarradas a uma árvore
com suas próprias roupas íntimas. O que seguiu foram horas de
espancamento, esfaqueamento e estuprocoletivo: uma delas ficou
desfigurada de tanto apanhar, a outra teve os mamilos arrancados.
Quando se cansaram dos horrores, os rapazes jogaram as meninas de um
barranco de 8 metros e, quando viram que elas não haviam morrido
ainda, resolveram apedrejá-las. Uma das vítimas, Danielly Feitosa,
acabou morrendo 11 dias depois. As outras seguem feridas.
Dificilmente voltarão a ter uma vida normal.
O
que aconteceu no último mês em Castelo do Piauí, a 180 km de
Teresina, - um dos mais assustadores casos de estupro do
noticiário recente - é o tipo de crime que aterroriza o imaginário
das pessoas. É o tipo de crime também que costuma receber mais
atenção: meninas muito novas atacadas por desconhecidos armados
obviamente muito cruéis. São casos horríveis, que todo mundo
condena com veemência: os ataques ganham destaque nos jornais,
delegados e juízes ficam indignados e especialmente empenhados em
punir os criminosos, que, quando chegam à cadeia, precisam até
mesmo ser afastados dos outros presos para não serem mortos. A
punição é exemplar. Mas, ao contrário do que parece, esse tipo
de estupro é também a minoria dos casos.
Primeiro,
pelo desenrolar no sistema de justiça. No Brasil não há
estimativas exatas, mas nos EUA apenas 0,2% a 2,8% dos casos
de estupro terminam com condenações. Graças aos
mecanismos que já vimos - a vergonha das vítimas, os procedimentos
burocráticos lentos e punitivos para a mulher, o medo de ser julgada
e a humilhação nas cortes -, isso quer dizer que 99% dos homens que
estupram seguem tranquilamente com suas vidas, sem nenhuma
consequência. Dá para imaginar que as estatísticas sejam mais
desanimadoras aqui no Brasil.
O
crime de Castelo também foge à regra porque na maior parte os casos
não são tão extremos: os criminosos não são tão maldosos, as
vítimas não são tão indefesas, a violência é mais sutil. De
fato, existe um mito de que estupros apenas acontecem de noite, em
vielas escuras, por parte de malfeitores armados e encapuzados que
atacam donzelas virginais. A verdade não é bem assim. Provavelmente
o dado mais triste sobre estupros no Brasil diz respeito ao perfil
das vítimas: segundo o Ministério da Saúde, 70% das estupradas são
crianças e adolescentes de até 17 anos (dá umas 350 mil pessoas ao
ano, uma Zurique inteira) e a maior parte delas foi violentada dentro
de casa por pessoas de confiança, como padrastos ou amigos da
família.
Mas,
mesmo entre adultos, o mito do estuprador maligno desconhecido não
passa disso: mito. Na vida real, boa parte dos casos de violência
sexual acontece dentro de casas e casamentos, depois de festas ou
encontros, no meio de relações sexuais que começaram consensuais,
entre pessoas que já se conheciam e com agressores que nem de longe
têm o perfil de "estupradores". No Brasil, por exemplo,
entre 10% a 14% de todas as mulheres vão sofrer violência sexual
por parte de seus parceiros. É o caso de Lucineide, do começo da
reportagem. E de Emma, Allison e Kelsey, dos EUA.
Emma
Sulkowicz estava no primeiro dia de seu segundo ano de faculdade na
Universidade de Columbia, EUA, quando encontrou Paul, um ex-ficante,
em uma festa. Os dois conversaram e começaram a se beijar, e o
encontro acabou indo parar no quarto dela. O sexo estava consensual
até que, a certa altura da relação, Paul resolveu segurar suas
pernas com força, apertar seu pescoço e penetrá-la analmente -
tudo enquanto Emma dizia "não, para!". Já Allison Huguet
conhecia seu estuprador, Beau, desde criancinha - na verdade, eram
tão amigos que ela o chamava de irmão. Em 2010, ambos resolveram ir
a uma festa na casa de um conhecido e encheram a cara. Tanto que
Allison achou melhor dormir por lá mesmo em vez de voltar de carro.
Ela capotou sozinha no sofá, apenas para acordar duas horas depois
com as calças e a calcinha na altura dos pés e seu melhor amigo
gemendo por cima dela - ele estava fazendo sexo com ela desacordada.
Aterrorizada, ela fingiu que estava dormindo. O que aconteceu com
Kelsey Belnap foi ainda pior. Ela estudava na Universidade de Montana
quando resolveu sair com uma amiga. As duas foram até o apartamento
do namorado da amiga, onde estavam quatro rapazes do time de futebol
da faculdade. Todos começaram a beber e os rapazes desafiaram as
meninas a ver quem tomava mais doses de destilados. Kelsey deve ter
virado uns oito copos antes de capotar em um dos quartos. Quando ela
voltou a si, percebeu que um dos meninos estava enfiando o pênis
ereto em sua boca. A menina tentou se desvencilhar, mas não
conseguiu. Nas próximas horas, enquanto acordava e voltava a ficar
inconsciente, todos os quatro rapazes se revezaram para penetrá-la.
Ela só ficou sabendo o que aconteceu já no hospital, quando uma
enfermeira a examinou.
Dos
três crimes, só o de Allison terminou com o estuprador na cadeia -
e isso apenas porque ela conseguiu gravar um telefonema no qual ele
confessava o crime. Nos outros dois, a credibilidade das moças foi
atacada sem parar depois que elas fizeram a denúncia e o sexo foi
considerado consensual - inclusive o de Kelsey: os policiais
acreditaram que uma menina inconsciente teria condições de dar
consentimento para quatro homens diferentes fazerem sexo com ela.
Os
casos acima são americanos porque, por lá, o debate sobre violência
sexual nos campi universitários anda aquecido e meninas do país
inteiro estão vindo a público para contar suas histórias. Governos
e instituições estão batendo cabeça para tentar conter o que é
chamado de uma "nova onda de estupro": pesquisas
indicam que 20% das universitárias foram estupradas em suas vidas, e
84% delas por alguém que elas conheciam. "As universidades
escondem os crimes porque não há consequências se elas fazem algo
errado", opina Shelby Cuomo, pesquisadora de violência sexual
universitária da Universidade George Washington. "Uma
investigação concluiu que até mesmo a escola de direito de Harvard
não cumpriu todas as exigências da lei na hora de investigar um
caso de estupro. Mesmo assim, a escola não foi punida."
Por
aqui, as denúncias também estão começando. As mais famosas
envolvem casos de violência sexual na USP, como o da estudante de
veterinária que dormiu em uma festa de república e acordou com um
colega estuprando-a por trás e o da caloura de medicina que foi
violentada por um funcionário da faculdade durante uma festa em
2011. Quando as meninas procuraram ajuda dentro do campus, ouviram de
alunos, assistentes sociais e centros acadêmicos que seria melhor
não fazer as denúncias: era melhor não manchar a faculdade.
Felizmente, o conselho não prevaleceu. As ocorrências foram tantas
que, a certa altura a USP não conseguiu mais ignorar as denúncias.
O caso acabou virando até uma CPI e causou a renúncia de Paulo
Saldiva, o professor que estava coordenando as investigações. "A
faculdade se comportou mal e ficou na defensiva sobre as denúncias.
Há uma crise de conduta e de valores", disse ele na saída. O
relatório final da CPI incluiu 112 estupros dentro da universidade.
Ainda assim, o número está longe da verdade: a aluna de geografia
Aline*, por exemplo, que contou à SUPER como foi estuprada em uma
festa da Faculdade de Arquitetura, não relatou seu caso. Ela tinha
certeza de que não seria ouvida. É exatamente essa falta de
confiança nas instituições que reforça o silêncio.
O dilema do pegador
A
"nova onda de estupro", porém, não é novidade.
Casos como os acima sempre aconteceram, especialmente em ambientes
que valorizam a pegação regada a muito álcool - basta conversar
com alguma conhecida sua que ela vai saber contar alguma história
parecida. Meninas muito bêbadas para consentir ou rapazes que
insistem em sexo mesmo depois de a moça dizer que não está a fim
existem desde que o mundo é mundo. Antigamente, atos assim eram
descartados como "sexo ruim" ou "uma noite para
esquecer" ou "ressaca moral". A diferença é que
agora as meninas estão sabendo dar nome à violência que
viveram: estupro. "Antes, muitos dos casos apareciam como
`ele forçou a barra¿, `eu não queria, mas acabou acontecendo¿, ou
algo que começa consensual e depois fica violento, e a menina não
consegue parar o rapaz. Agora, as meninas estão percebendo esses
casos como uma violência, o que é uma grande mudança de
perspectiva", diz Heloisa Buarque de Almeida, professora de
antropologia da USP, que montou um grupo de apoio para vítimas de
violência sexual no campus.
É
muito importante não descreditar esse tipo de estupro entre
conhecidos como menos grave do que outros - como já fizeram figuras
famosas, como o biólogo Richard Dawkins, da entrevista na pág. 56.
Ser obrigada a fazer sexo à força, mesmo que seja com um conhecido,
é traumático e traz consequências para o resto da vida afetiva e
sexual da vítima.
Pesquisas
também mostram que há um comportamento predatório entre os
universitários acusados de violência sexual. De acordo com David
Lisak, psicólogo da Universidade de Duke e um dos maiores
especialistas em violência sexual entre conhecidos, apenas uma
pequena minoria de rapazes é responsável pela vasta maioria de
ocorrências de estupro entre universitários - entre 90% e
95% dos casos são cometidos por alguém que já estuprou antes. E
esses rapazes cometem os atos repetida e conscientemente. Lisak
entrevistou dezenas de rapazes em universidades e pediu para que eles
descrevessem como costumam seduzir as meninas, sempre tomando o
cuidado de não chamá-los de estupradores. O relato de um deles, que
ele apelidou de Frank, é assustador: "A gente sempre fica de
olho nas meninas mais gatas. As mais fáceis são as calouras porque
elas não sabem beber ainda, aí a gente convida elas para a festa e
serve qualquer bebida muito doce e cheia de álcool. Tem que ter
talento pra isso, escolher as gatinhas já durante e semana e jogar o
papo. Aí quando elas estiverem muito bêbadas, eu dou o bote. Levo
prum quarto e tento tirar a roupa. Elas reagem, dizem que não
querem, mas eu insisto e uma hora elas acabam capotando mesmo. Aí eu
como elas." Qualquer semelhança com conversas de vestiário não
é coincidência.
O
problema aí está, claro, no que se espera de um rapaz jovem. Muitos
deles, ao forçar a barra ou fazer sexo com uma moça bêbada demais
para saber o que está fazendo, não têm noção de que estão
cometendo um crime grave e impondo um grande trauma às meninas.
Instigados pela cultura (universitária e generalizada) de pegar o
maior número de mulheres possível e não perder nenhuma chance de
fazer sexo, acabam ignorando consentimentos não dados ou
resistências. A solução está, é claro, em mudar essa cultura.
Não cobrar de meninos que sejam pegadores. Nunca culpar uma menina
pelo que aconteceu com ela. Entender que sexo só vale a pena quando
os dois estão a fim. E que `não¿ sempre - sempre, sempre - quer
dizer "não".
Tudo igual
A
maneira como leis e culturas lidam com o estupro mudou pouquíssimo
nos últimos 4 mil anos
O
Código de Hamurabi
Um
dos primeiros códigos de leis conhecidos, de 4 mil anos, já falava
emestupro. A peculiaridade é que, no caso de uma virgem, o ato era
considerado um crime contra a propriedade - do pai dela. Já as
mulheres casadas eram executadas junto com seus estupradores, pois
tinham cometido adultério.
Estupro bíblico
- e o do Brasil
O
Velho Testamento deixa claro: estuprar uma virgem só era crime se o
homem não se casava com ela depois. Assim como no Brasil até 2002 -
até essa data, estupradores podiam escapar da prisão caso se
casassem com suas vítimas.
Roma
antiga e Game of Thrones
Em
Roma, ao final de um casamento, o casal passava por um pequeno
ritual: a mulher fingia ter muito medo e se agarrava à mãe,
enquanto os amigos do noivo a arrastavam à força até os aposentos
do marido. É um ritual que lembra a época em que mulheres eram
sequestradas por invasores - e que George R. R. Martin reproduz em
Game of Thrones.
Por que o silêncio vence:
78%
dos brasileiros acham que o que acontece entre um casal em casa não
interessa aos outros.
63%
pensam que casos de violência dentro de casa devem ser discutidos
somente entre os membros da família.
E
como a culpa cai no colo delas:
59%
dos brasileiros concordam que existe "mulher para casar" e
"mulher para a cama".
58%
acreditam que, se as mulheres soubessem como se comportar, haveria
menos estupros.
Fonte:
IPEA
Dicas medievais - e da música pop
Na
Idade Média, consentimento não era premissa para o sexo. O bispo de
Óstia, Itália, escreveu: "As mulheres sempre estão prontas
para o sexo e não precisam de preparação". Outro documento do
século 13 recomendava: "Levante o vestido dela com uma mão e
coloque a outra sobre seu sexo. Deixe que ela grite e faça o que
quiser com ela". Parecido com a música Blurred Lines, de Robin
Thicke, na qual o cantor também não pergunta o que a moça quer:
"Eu sei que você quer, eu sei que você quer, do jeito que me
agarra, deve querer fazer sacanagem".
Não brinque com famosos. Hoje e há sete séculos.
No
século 14, os livros de história registram uma história
de estupro a crianças: é a da pequena Joan Seller, filha
de 11 anos de um limpador de celeiros de Londres. Violentada por um
mercador rico, o caso dela foi a julgamento, mas o tribunal acabou
decidindo que, por seu status, ela não tinha direito de consentir ou
não: estava basicamente à disposição dos homens de maior
hierarquia. Assim, seu estuprador ficou livre e seguiu fazendo
negócios. Apesar de hoje em dia tribunais não serem tão francos
nos veredictos, o desfecho para pessoas que denunciam ricos e
influentes por estupro é quase sempre igual. Celebridades
acusadas de violência sexual raramente são condenadas e a
credibilidade das vítimas sempre acaba em frangalhos.
Só é violência se tiver marcas?
Em
meados do século 20, pensadores acreditavam que "a maioria das
mulheres têm a fantasia de ser estupradas" e que, afinal, era
difícil saber se uma mulher que dizia "não" realmente não
queria sexo. Por isso, "uma mulher precisa transmitir sua
resistência com mais que um mero protesto verbal ou uma atitude
infantil como o choro". Na prática, até hoje indícios de
resistência e marcas de violência são essenciais para provar se o
sexo foi consensual ou não nas cortes. Mesmo com estudos provando
que uma das reações mais comuns à violência sexual é a vítima
ficar congelada, esperando que tudo acabe logo.
Você sabe reconhecer um estupro?
A
personagem Joan, do seriado Mad Men, foi estuprada na segunda
temporada por seu noivo - causando um debate nas redes
sobre estupro marital, onde havia quem defendesse que se tratava
de sexo consensual. A atriz, Christina Hendricks, ficou assustada: "O
chocante é quando dizem coisas como: "Sabe aquela cena em que a
Joan meio que é estuprada". Ou dizem estupro e
fazem sinal de aspas com os dedos. Eu fico tipo: "O que vocês
estão falando?! Aquilo foi estupro." O problema não está
só com os espectadores. Muita gente acha que não existe estupro na
cama de casal - durante muito tempo, inclusive, vigorou o "dever
marital", no qual sexo no casamento era considerado obrigação.
Mas 14% das brasileiras são estupradas por seus parceiros.
Acompanhe a matéria através do link: http://super.abril.com.br/comportamento/como-silenciamos-o-estupro?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=twitter&utm_campaign=redesabril_super
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