Bichos aquáticos são os que mais sofreram com caça
Bichos aquáticos da Amazônia são os que mais sofreram com caça
Num
trabalho de detetive sem precedentes, pesquisadores brasileiros
usaram obscuros registros portuários e dados estatísticos de órgãos
do governo que nem existem mais para estimar o impacto da caça
comercial na Amazônia ao longo do século 20.
O
resultado, à primeira vista, é estarrecedor: ao menos 23 milhões
de bichos foram abatidos para obter couro ou pele entre 1900 e 1970,
estimam os cientistas. Note que esse número nem se refere a toda a
Amazônia brasileira.
Entraram
na conta apenas alguns Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia, a
respeito dos quais foi possível levantar informações mais
precisas. Foi um ciclo de comércio que rendeu meio bilhão de
dólares (valores de 2015) apenas entre os anos de 1930 e 1960.
Há
uma boa notícia em meio a aparente hecatombe. Os dados sugerem que a
pressão da caça não foi suficiente para colocar em perigo sério
as populações da maioria dos animais terrestres de grande porte.
Por outro lado, a situação dos bichos aquáticos e semiaquáticos é
mais preocupante, com uma série de colapsos populacionais que
provavelmente refletem uma fragilidade dessas espécies diante da
exploração.
Publicada
na revista “Science Advances”, a pesquisa é assinada por André
Antunes, da WCS (Sociedade para Conservação da Vida Selvagem), e
Carlos Peres, da Universidade de East Anglia (Reino Unido), além de
estudiosos do Brasil, dos EUA e da Nova Zelândia.
Dilúvio
de dados
“Espero
que a publicação desse artigo possa abrir uma nova perspectiva na
ecologia histórica da Amazônia e encorajar outros pesquisadores a
desbravarem outras fontes”, diz Antunes.
“Desbravar”
é o termo correto, de fato. Foi preciso vasculhar bibliotecas do
Amazonas, do Acre e do Rio de Janeiro em busca de relatórios
comerciais do porto de Manaus, da Associação Comercial do Amazonas
e até da chamada Codeanma, extinta comissão de desenvolvimento
econômico amazonense.
Em
alguns casos, essas fontes citavam as espécies aos quais pertenciam
couros e peles comercializados -mas nem sempre colocavam o número de
indivíduos, apenas o peso do material. Outros resistros nem falavam
em espécies, grafando simplesmente “fantasia”, por exemplo (para
designar genericamente peles de felinos selvagens).
Diante
dessas dificuldades, foi necessário desenvolver modelos estatísticos
para converter, por exemplo, quilos de pele ou de couro em número de
indivíduos de uma espécie capturados. O resultado tem graus
consideráveis de incerteza, mas mostra, de uma maneira geral, a
trajetória da caça dos principais bichos da região ao longo de
décadas.
Da
Guerra à Moda
Os
lados indicam que, como qualquer outro negócio, a caça comercial
seguiu algumas das grandes flutuações da economia mundial e
amazônica ao longo do século 20. Faz sentido que o ramo de negócios
tenha começado a ganhar força a partir da segunda metade dos anos
1910.
Trata-se
do momento no qual a obtenção da borracha a partir da s
seringueiras, até então grande motor da economia da Amazônia
moderna, sofre grande baque por causa da concorrência malaia. O
comércio de couros e peles vira uma alternativa de sobrevivência
para a população da região.
No
fim dos anos 1930, há novo crescimento das capturas por um motivo
inverso ao da primeira década do século. Com a Segunda Guerra
Mundial, o Brasil novamente vira grande fornecedor de borracha da
indústria militar dos EUA. Até 80 mil “soldados da borracha” se
mudam para a Amazônia, e muitos complementavam renda com a caça
comercial, que também tinha mercado nos EUA.
A
moda internacional -e a paixão por peles de felinos- dos anos 1950 e
1960 foi a responsável pelo último grande crescimento da caça, com
quase 1 milhão de peles vendidas só em 1969. A indústria só
declinou de vez nos anos 1980, mesmo com a proibição oficial da
caça no Brasil em 1967 (a lei ainda permitia a venda de peles
supostamente estocadas, o que explica o comércio recorde dois anos
após a nova legislação).
Jacaré
nada de costas
O
que os registros comerciais sugerem é que, apesar de tudo, a captura
da maioria das espécies terrestres mais visadas não tinha sofrido
grandes declínios no fim do período de caça legal ( a exceção é
a queixada, bicho que vive em grupos com muitos indivíduos, que
podem ser abatidos praticamente ao mesmo tempo por um caçador
experiente).
A
história é bem diferente para os animais dos rios da região, como
o jacaré-açu, a ariranha e o peixe-boi. Os pesquisadores defendem
que esses bichos vivem em ambientes de acesso relativamente fácil
(por barco, ao menos), enquanto os de terra firme conseguem se
embrenhar em áreas mais remotas da mata, que servem de refúgios.
Para
eles, os resultados devem ajudar a rediscutir a questão da caça de
subsistência na Amazônia, hoje tolerada em muitos casos, mas com um
pé na ilegalidade e vista com desconfiança por ambientalistas.
“A
Lei de Fauna no Brasil está completamente obsoleta em relação às
abordagens modernas de manejo de espécies caçadas”, argumenta
Peres. “A caça de subsistência valoriza o capital natural da
floresta em pé e pode perfeitamente ser manejada, em vez de ser
proibida terminantemente e até criminalizada.”
Dizer
que seria difícil fiscalizar a caça controlada é falaciosos,
afirma Antunes. “A falta de governança na Amazônia que poderia
dificultar a fiscalização da caça se ela fosse regulamentada para
fins exclusivos de subsistência é a mesma que vem fazendo vista
grossa a todo tipo de caça e que viu a perda de aproximadamente 30%
da Amazônia através do desmatamento”, critica.
Legalizar
a caça controlada, em períodos e locais específicos, para um
subgrupo das espécies da região, também estimularia a população
local a colaborar para a preservação da mata.
Matéria na íntegra através do link: http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2016/10/1822305-bichos-aquaticos-da-amazonia-sao-os-que-mais-sofreram-com-caca.shtml?cmpid=twfolha
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