CANIBALISMO
O prato original
O gosto por comer semelhantes esteve nas raízes da humanidade. Como eram esses banquetes? E em que momento abandonamos essa iguaria?
Há
uma verdade que a humanidade tem se recusado a enxergar e admitir:
somos todos potencialmente canibais. Mas novas descobertas confirmam:
o gosto por comer semelhantes esteve nas raízes da humanidade. Como
eram esses banquetes? E em que momento abandonamos essa iguaria?
É
a matéria-prima de que são feitos os pesadelos, da história de
João e Maria a O
Silêncio dos Inocentes.
Membros humanos desossados com a mesma consideração que um
açougueiro tem com um boi, o cérebro mais complexo da Terra
devorado por crianças gulosas, o tutano dos ossos engolido como quem
chupa uma colher de doce de leite. Não há outro retrato
aparentemente tão bem-acabado de selvageria.
Esse
tipo de cena embrulha tanto o estômago que varremos o canibalismo
para debaixo do tapete. Para muita gente, nenhum ser humano seria
capaz de agir como antropófago de livre e espontânea vontade, sem
estar morrendo de fome ou insano. Rotular outros povos e culturas de
canibais teria sido um jeito conveniente de desumanizá-los, de
justificar sua dominação – e só. Melhor esquecer esse assunto.
Mas, então, como explicar as marcas de canibalismo que os cientistas
têm encontrado em toda parte – em ossos humanos antigos e até no
DNA?
Nos
últimos anos, a investigação de ossos canibalizados com milhares
de anos e de povos para os quais a antropofagia era corriqueira há
poucas décadas mostra que o canibalismo não é só selvageria, mas
também ato de coesão social e até de amor. Em uma ou em outra
forma, a prática acompanhou o Homo sapiens do seu passado evolutivo
até hoje, e talvez tenha sido comum a ponto de deixar uma assinatura
no nosso RG biológico, os genes.
Antes
de mais nada, o canibalismo é só um nome genérico para algo que
abrange extremos de agressividade (devorar prisioneiros de guerra) e
ternura (comer as cinzas de parentes para honrá-los, como fazem até
hoje os índios ianomâmis, provavelmente o único grupo étnico do
planeta no qual algum tipo de canibalismo ainda é corriqueiro). Os
dois casos exemplificam bem o que os antropólogos costumam chamar,
respectivamente, de exocanibalismo (comer gente de fora do grupo a
que se pertence) e endocanibalismo (a devoração de membros do
próprio povo). As classificações, contudo, não param por aí.
“Há
o canibalismo funerário, realizado para honrar os mortos; o
agressivo, que visa aos inimigos, e, é claro, o de sobrevivência,
praticado em condições extremas como acidentes e naufrágios”,
diz a arqueóloga italiana Paola Villa, da Universidade do Colorado,
nos Estados Unidos. “Na Idade Média e na Renascença, houve até o
que podemos chamar de canibalismo medicinal, no qual certos remédios
incluíam sangue ou tecidos humanos”, afirma ela.
Classificar
é a parte fácil. Difícil é entender quais as raízes do ato e por
que ele provoca repulsa e fascínio em igual medida. O nojo que a
mentalidade européia sentia pelos banquetes canibais costuma ser
personificado pelo aventureiro alemão Hans Staden. Em 1554, ele
comandava o forte português de Bertioga, no litoral de São Paulo, e
passou oito meses prisioneiro dos índios tupinambás, notórios
apreciadores de carne humana assada sobre uma grelha de madeira. No
relato que publicou depois de voltar à terra natal, Staden diz ter
argumentado com o chefe indígena Cunhambebe, que mordia um pernil de
gente: “Um animal irracional não come outro parceiro; um homem
deve devorar outro homem?”.
A
resposta do tupinambá (Jauará ichê ou “sou um jaguar”, em
tupi) ficou famosa. Mas, se fosse mais dado a debates à moda do
Ocidente, o chefe poderia ter usado um argumento melhor: uma batelada
de espécies animais devora o próximo, inclusive a que mais se
aparenta ao homem. “Jane Goodall observou ocorrências de
canibalismo entre os chimpanzés”, diz a bioantropóloga Sheila
Mendonça de Souza, da Fundação Oswaldo Cruz, se referindo a uma
das maiores e mais famosas primatologistas do século 20. “Uma
fêmea pode tirar partido de outra que está doente, por exemplo, e
comer o filhote dela”, afirma a pesquisadora.
Aparentemente,
o que está em jogo não é a fome do canibal, a despeito do que reza
a lenda. “Tanto em seres humanos quanto em outras espécies, as
razões tendem a ser evolutivas – como os macacos comendo os
filhotes de uma fêmea para que ela volte a ficar no cio e tenha
filhotes deles –, sociais e rituais”, diz William Leonard,
antropólogo da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. “A
energia que uma pessoa gasta para matar e preparar outro ser humano
simplesmente não compensa o que se consegue comendo-o”, afirma
Leonard. Essa demonstração foi uma ducha de água fria para os
cientistas que tentavam explicar o canibalismo como uma forma de
suprir a falta de proteína animal em algumas partes do planeta.
Mesmo povos com boas quantidades de carne de caça na dieta parecem
ter adicionado a de seres humanos ao menu, como os astecas no México
e os waris de Rondônia.
Não
quer dizer que, no desespero, um filé de gente não tenha virado
opção em alguns casos. O canibalismo de sobrevivência é pelo
menos tão antigo quanto o Segundo Livro dos Reis, da Bíblia, que
narra um cerco a Samaria, capital de Israel, no qual duas mães
desesperadas resolvem dividir seus bebês: “Dá-me o teu filho,
para o comermos hoje; amanhã comeremos o meu”. Na era das
navegações, marinheiros se viram forçados a tirar a sorte para ver
quem morria no caso de naufrágios. Emblemático é o caso do
baleeiro norte-americano Essex, que foi literalmente afundado pela
baleia que caçava em 1820, no meio do oceano Pacífico (a história
inspirou o romance Moby
Dick,
de Herman Melville). Primeiro, os 21 tripulantes, a bordo de botes,
comeram a carne dos companheiros que faleciam naturalmente. Quando a
fome apertou, a sorte decidiu quem morreria para alimentar os demais.
O curioso é que o acidente só virou tragédia por medo de
canibalismo – ao perderem o navio, eles se recusaram a navegar para
a Polinésia, muito mais próxima que a costa do Peru, para onde
seguiram, por medo da fama de antropófagos de seus habitantes.
Relatos
de povos do planeta todo que comiam carne humana enchem páginas e
páginas desde a Antiguidade até o século 20. Africanos do Congo,
aborígenes australianos, tribos de toda a América, judeus da
Europa, todos eles ganharam a pecha de canibais em algum momento da
história, embora nenhuma acusação tenha sido comprovada. Os
ancestrais do homem moderno (chamados de hominídeos pelos
cientistas) também eram considerados canibais notórios, graças à
quebradeira generalizada em que seus esqueletos se encontravam e às
marcas de cortes nesses ossos. Essa pista se revelou ambígua, para
dizer o mínimo: ossos marcados podem ser produzidos por uma simples
preparação funerária do cadáver. Além disso, animais carniceiros
e mudanças no solo são suficientes para desmontar qualquer
esqueleto. As conclusões foram suficientes para fazer a cabeça de
muitos cientistas.
“Não
há evidências do canibalismo como prática socialmente aceita em
nenhuma parte do mundo”, disse o antropólogo norte-americano
William Arens no livro The
Man-Eating Myth (“O
Mito do Antropófago”, inédito em português), de 1979.
Apesar
da conversa de Arens, cientistas resolveram escarafunchar o tabu.
Saíram atrás de indícios que provassem, sem sombra de dúvida, que
o canibalismo ocorria. A maneira como os corpos humanos foram
retalhados, consumidos e descartados deveria espelhar o que se fazia
com a carne de animais no mesmo lugar e época; a modificação do
lugar do banquete por forças externas teria de ser mínima; e, se
possível, traços de moléculas que só o corpo de uma pessoa produz
(como trechos de DNA ou proteínas humanos) deveriam ser flagrados.
Critérios tão exigentes que muitos casos suspeitos, em nome da
certeza absoluta, ficaram de fora.
Com
essas regras na mão, os cientistas olharam com atenção para alguns
dos primeiros europeus – cerca de seis indivíduos da espécie Homo
antecessor cujos restos foram descansar na caverna de Gran Dolina, no
norte da Espanha, há cerca de 800 mil anos. Esses sujeitos, com um
cérebro pouco menor que o nosso, tiveram as juntas cortadas, a carne
do rosto, braço e perna retalhada e raspada com toscas ferramentas
de pedra e os ossos quebrados para extrair o nutritivo tutano. “Não
há provas que relacionem essa manipulação com nada ritual”, diz
o pesquisador espanhol Carlos Díez, da Universidade de Burgos. Os
ossos foram encontrados amontoados em meio aos de animais carneados
do mesmo jeito, como rinocerontes, cervos e elefantes. “Existem lá
espécies demais para se falar em escassez de recursos ou nutrientes.
O
caso de Gran Dolina é puramente nutricional-gastronômico”, diz
Yolanda Fernández-Jalvo, do Museu Nacional de Ciências Naturais, em
Madri. É quase como se encontrássemos restos de gente na lata de
lixo ao lado da churrasqueira. Quer prova melhor do nosso passado
canibal?
A
cena espanhola é quase idêntica à que Timothy White,
paleoantropólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley,
encontrou em 1999 na caverna de Moula-Guercy, no sudeste da França.
Há cerca de 100 mil anos, a gruta foi o lar de um grupo de
neandertais cujas duas presas prediletas eram cervos e… outros
neandertais. Todos os ossos do crânio dos seis hominídeos devorados
tinham marcas de fratura, provavelmente para facilitar o acesso ao
cérebro das vítimas. Novamente, não havia sinal de fome
generalizada ou de ritual.
Mas
falar de neandertais é uma coisa. Outra, bem diferente, é colocar a
fama de comedor de gente no sábio Homo sapiens. Paola Villa mexeu
sem querer nesse vespeiro ao dar de cara com o sítio francês de
Fontbrégoua, muito mais recente – seus habitantes viveram há
apenas 5 ou 6 mil anos e eram pastores que também caçavam cervos e
javalis. “Foi totalmente inesperado”, diz a arqueóloga. “Havia
muitos ossos humanos e de animais misturados, tratados exatamente do
mesmo jeito. Eles estavam numa região de clima ameno e tinham seus
rebanhos. Não estavam passando fome. Parece-me que foi canibalismo
agressivo, decorrente de alguma forma de conflito”, diz.
O
próprio Timothy White, descobridor dos neandertais canibais,
encontrou Homo sapiens com hábitos bem parecidos ao estudar o sítio
de Mancos, na fronteira do Colorado com o Novo México, nos Estados
Unidos. A região foi lar dos anasazi, uma complexa cultura que
dominou o cultivo do milho e a construção de vilas que chegavam a
milhares de habitantes. Em Mancos, quase 30 indivíduos (homens,
mulheres, adolescentes e crianças) foram esquartejados, carneados e
cozinhados em recipientes de barro por volta do ano 1200. São
visíveis marcas de queimadura nos ossos e até polimento na ponta de
alguns, causado pelo atrito entre o osso e o fundo do pote enquanto o
cozido fervia.
Por
motivos pouco claros, os anasazi parecem ter recorrido ao canibalismo
com frequência perturbadora: há uma dúzia de sítios como Mancos
no sudoeste dos EUA. Um deles conservou fezes fossilizadas que tinham
a versão humana da mioglobina, uma proteína dos músculos. O único
jeito de as fezes ganharem esse condimento macabro é a ingestão de
carne de gente.
Essas
pistas mexem com a imaginação de cientistas e leigos, mas não
bastam para desvendar com que freqüência festins semelhantes
aconteciam. Se os ossos não contam toda a história, os genes podem
fazê-lo. Foi o que descobriram no último mês de abril cientistas
britânicos e australianos, ao flagrar uma possível assinatura
canibal no DNA de povos do mundo inteiro. O gene que investigaram
contém as instruções para a produção de uma proteína conhecida
como príon, que, em condições normais, é crucial para formar as
conexões entre as células do cérebro. Acontece que o príon também
pode ser fatal. Quando sofre uma pequena alteração de formato, ele
pára de funcionar e ainda por cima começa a “infectar” outras
moléculas semelhantes: príons do cérebro todo passam a ter o
formato modificado. Com a mudança, enzimas que normalmente os
destruiriam deixam de fazer efeito. Os príons se acumulam no cérebro
e começam a matar neurônios.
O
cérebro se enche de buracos, a vítima perde todo o juízo e morre
de forma terrível. É a doença de Creutzfeldt-Jakob, cuja versão
em bovinos é chamada de mal da vaca louca.
Por
sorte, o problema aparece por ano em apenas um em cada milhão de
indivíduos. Mas esse número pode aumentar. Se o cérebro de um
doente for comido por alguém saudável, o príon maligno pode
infectá-lo também. Ou seja, uma marca confiável de canibalismo
numa população são índices excessivamente altos de
Creutzfeldt-Jakob. Por exemplo, entre os forés, uma tribo das
montanhas da Nova Guiné, a doença (chamada por eles de kuru) estava
fora de controle nos anos 50: matava 1% da população por ano e
chegou a deixar alguns vilarejos quase sem mulheres jovens, as mais
afetadas pela doença. Como se descobriu mais tarde, a epidemia era
causada pelo costume de comer os próprios mortos em cerimônias nas
quais mulheres e crianças ficavam com o cérebro – tornando-as
alvos fáceis para o príon maligno.
Não
que algo fosse desperdiçado: os homens comiam os músculos do morto
e até as fezes que ainda tinham sobrado no intestino grosso do
falecido. “A preocupação espiritual que eles mostravam pelo corpo
do parente morto e o desejo de incorporá-lo ao dos vivos são
similares à crença cristã na transformação do pão e do vinho no
corpo de Cristo”, diz o médico australiano Michael Alpers, da
Universidade Curtin de Tecnologia, um dos cientistas a descobrir como
o kuru era transmitido. A mortandade só parou nos anos 50, quando o
governo proibiu a prática.
Alpers
e seus colegas ingleses verificaram que forés com duas versões
diferentes do gene do príon, uma vinda do pai e outra da mãe,
tinham uma chance muito maior de sobreviver. De 30 mulheres com mais
de 50 anos que haviam participado dos festins antropofágicos, nada
menos que 23 – cerca de 77% – tinham esses genes “híbridos”.
Os índices altos são uma prova da evolução operando – como o
gene ajudava as mulheres a sobreviver depois dos banquetes, ele se
tornou cada vez mais comum ao longo das gerações.
Mas
surpresa mesmo veio quando os pesquisadores testaram a freqüência
desses genes em outros povos do planeta. Nada menos que 48% dos
turcos, 41% dos colombianos e 38% dos franceses eram como a maioria
dos forés. A porcentagem alta nessas populações que, ao que se
saiba, nunca foram de comer gente, é indício seguro de que, no
passado delas, o endocanibalismo foi uma forma de lidar com os
mortos. Geneticistas calculam que isso foi incorporado no DNA há uns
500 mil anos, mais ou menos a idade de muitos dos esqueletos
canibalizados encontrados na Europa.
Como
os forés, os waris, tribo de Rondônia, ainda praticavam o
canibalismo até o fim dos anos 50. A etnia ajuda a entender vários
aspectos da prática: à maneira dos tupinambás, eles matavam e
devoravam seus inimigos, mas também comiam os próprios mortos. “O
canibalismo para eles era quase uma operação lógica”, diz a
antropóloga Aparecida Vilaça, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que passou vários meses ao lado da tribo no fim dos anos 80
e começo dos anos 90. “O ato de predar é o que define, para eles,
o que é ser humano”, diz Aparecida. Quem come é wari’ (pronome
da primeira pessoa do plural na língua da tribo, ou seja, “nós”
– no sentido de “humano”, “gente”); quem é comido é
karawa (pronuncia-se “carauá”), algo como “animal”, “caça”
ou “comida”. “Não são categorias, mas posições que mudam o
tempo todo”, diz a antropóloga.
Em
sentido estrito, wari’ são só os membros da tribo. É por isso
que eles retalhavam os braços, as pernas e a cabeça de seus
inimigos durante a guerra e os comiam com raiva, rapidamente,
segurando nos ossos – para afirmar nestes a condição de karawa.
Um ritual totalmente diferente acompanhava a morte de um wari’.
Seus parentes eram chamados das aldeias vizinhas e a carne ficava
apodrecendo durante dois ou três dias, porque não se podia devorar
um companheiro com prazer. Separada dos ossos, a carne era desfiada e
comida só por quem não era parente consanguíneo do morto – e
usando pauzinhos, para não tocá-la. Os ossos, pulverizados, eram
comidos com mel. Os xamãs waris acreditavam que o desaparecimento do
corpo permitia que a alma alcançasse o mundo subaquático, para onde
vão os mortos.
Embora
as razões e a amplitude do canibalismo sejam pouco claras, não é
difícil que muitos povos o entendessem de forma parecida com a dos
waris. O fato de ossos humanos serem destruídos e misturados aos de
outros bichos não significa que quem comia não sentia nada. Mas as
emoções não ficam preservadas sob a terra e provavelmente nunca
saberemos o que passava pela cabeça desses homens. O que dá para
saber, cada vez com mais certeza, é que o canibalismo, hoje banido,
está na origem da natureza humana.
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