Transamazônica Crime e Abandono
TRANSAMAZÔNICA crime e abandono
Pobreza,
desmatamento e extração ilegal de madeira e ouro margeiam rodovia
na floresta
Rodovia Transamazônica. |
Na
Amazônia, nenhuma intervenção humana provoca tantas transformações
como uma rodovia. E nenhuma rodovia causa tanto impacto na maior
floresta tropical do mundo como a Transamazônica.
Pouco
mais de 40 anos após a inauguração da estrada símbolo da ditadura
militar, a reportagem da Folha percorreu quase todo o seu trecho
amazônico, entre Lábrea (AM) e Altamira (PA). Do total de 1.751 km,
pouco menos de 10% estão asfaltados.
Tal
qual ouroboros, a mítica serpente que morde o próprio rabo, a
Transamazônica parece andar em círculos desde que foi aberta, sob o
lema nacionalista de “Integrar para não entregar”.
Último
município da rodovia, Lábrea (a 700 km em linha reta de Manaus) é
uma das mais novas e destrutivas frentes de desmatamento ilegal da
Amazônia, acompanhadas por grilagem e violência. A zona rural do
município soma sete assassinatos por disputa agrária em dez anos,
segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Em
Altamira (a 450 km em linha reta de Belém), outra megaobra estatal,
a hidrelétrica Belo
Monte, vem aprofundando impactos negativos na rodovia, como o
encurralamento de populações indígenas e a aceleração do
desmatamento. A ameaça de violência é permanente: em 13 de outubro
passado, o
secretário municipal do Meio Ambiente, Luiz Araújo, foi assassinado
em circunstâncias ainda não esclarecidas.
Entre
as duas pontas da rodovia, predominam na paisagem pastos
subutilizados, intercalados por unidades de conservação e terras
indígenas sob pressão de madeireiros e garimpeiros. As grandes
queimadas continuam no período seco, e, com a exceção de urubus, é
raro avistar um animal silvestre.
As
cidades têm IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) abaixo da média
do país e são dependentes de repasses federais. Todas sofrem de
administração ineficiente, segundo o ranking
de municípios da Folha
(REM-F),
incluindo Placas (a 691 km em linha reta de Belém), a última
colocada.
A
maioria sobrevive do comércio ilegal do ouro e da madeira, cujos
lucros compensam os custos de extração em remotas áreas
protegidas. O saque se beneficia da repressão esporádica –em duas
semanas, a reportagem testemunhou apenas uma ação fiscalizatória.
“Aqui
é o mundo da ilegalidade”, afirma a irmã franciscana Ângela
Sauzen, que desde 1986 atua em favor de pequenos agricultores em
Uruará (a 635 km em linha reta de Belém), onde até o prefeito é
madeireiro. “Quem pode mais, domina.”
Com
os cortes orçamentários, órgãos como a Funai (Fundação Nacional
do Índio) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis) vêm diminuindo as suas ações na
região. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) tem 52 servidores para cuidar de uma área pouco maior que o
Paraná: 20,7 milhões de hectares, divididos em 21 unidades de
conservação.
“Na
Amazônia, o fiscal está em extinção, é uma espécie rara”, diz
o chefe da Reserva Extrativista Médio Purus, José Maria de
Oliveira, que dispõe de dois servidores para atender a uma área de
604 mil hectares (cerca de quatro vezes a área da cidade de São
Paulo), 600 km de rios e 6.000 moradores.
Em
meio ao desmatamento crescente, uma constatação comum de índios e
fazendeiros é o aumento da temperatura e a diminuição das chuvas.
“O sol está mais forte” foi uma das frases mais ouvidas ao longo
estrada.
É
uma época de extremos climáticos. Em Humaitá (distante 590 km em
linha reta de Manaus), o rio Madeira registrou neste ano sua terceira
pior seca desde o início da medição, em 1967. Dois anos atrás, a
cidade foi submersa na maior enchente da história.
Tratores fazem terraplangem em trecho da rodovia Transamazônica ainda em construção. |
Mas
a estrada também reserva surpresas mais agradáveis. À beira do rio
Maici, os misteriosos índios pirahãs mantêm alguns dos mesmos
hábitos relatados no primeiro contato com os brancos, há três
séculos, e se recusam a aprender português.
Em
Medicilândia (a cerca de 540 km de Belém, em linha reta), maior
produtor de cacau do país, uma cooperativa que fabrica chocolate viu
as perspectivas melhorarem após a recente pavimentação da
Transamazônica até Altamira –uma viagem de 90 km que, antes
disso, podia durar quatro dias por causa dos atoleiros.
Em
reservas extrativistas, comunidades ribeirinhas têm superado os
desafios logísticos e de financiamento para viver da exploração da
floresta em pé por meio da castanha-do-pará e de outros produtos.
“A
gente tem uma população que conseguiu construir coisas boas aqui”,
diz Lucimar Souza, coordenadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia (Ipam) para a Transamazônica. “Se os projetos
dialogassem com as pessoas da região, teríamos melhores
resultados.”
Última parada da rodovia sedia nova frente de expansão do desmatamento na Amazônia
Bode
Velho, Bode Preto e Bode Augusto. Bastam alguns minutos de conversa
em Lábrea, a última cidade da Transamazônica, a 700 km em linha
reta de Manaus, para que ao menos um dos irmãos apareça na
história.
Não
é para menos. Filhos de um seringueiro cearense, são um caso raro
de ascensão social na região. Atualmente, estão envolvidos em
quase tudo na cidade, uma das mais novas e devastadoras fronteiras de
desmatamento na Amazônia.
Empresário,
Aurivaldo de Almeida, 58, o Bode Velho, iniciou a fortuna da família
com uma pequena barca no rio Purus. Hoje, é dono, entre outros
negócios, de uma loja de departamento de tamanho desproporcional ao
município de 44 mil habitantes e de quase todos os postos (cobra R$
4,98 pelo litro da gasolina, o preço mais caro da rodovia).
Fazendeiro,
Antonio, 51, o Bode Preto, já chegou a ter, com os irmãos, todas as
terras que margeiam a Transamazônica entre o casco urbano e o km 30,
num total de 17 mil hectares (cerca de cem parques Ibirapuera). Hoje,
possui o único frigorífico da cidade e três fazendas.
Na
entrada de uma dessas fazendas, à beira da rodovia, ele pendurou o
barco que deu início à fortuna da família, em imagem que lembra o
avião do traficante colombiano Pablo Escobar no portão da sua
fazenda Nápoles.
Político,
Bode Augusto (PP), 49, foi reeleito vereador com a maior votação do
município. Também tem uma pequena empresa, responsável pela
colocação de meio-fio nos recém-concluídos 16 km de asfalto da
Transamazônica, na entrada do casco urbano. É o único trecho
pavimentado dos 215 km até Humaitá (AM), a próxima cidade.
“Se
procurar a gente pelo nome, dificilmente vai achar. Mas, se perguntar
onde mora o Bode Preto, todo mundo sabe”, diz o irmão fazendeiro,
na varanda de sua ampla casa, construída na beira da Transamazônica
e famosa pela imensa estátua de são Jorge no jardim.
Porteira da fazenda de Antônio Almeida, mais conhecido como BODE PRETO, em Lábrea. |
MAIOR QUE O RJ
Na
última década, a cidade dos Bodes se tornou uma grande frente de
desmatamento, principalmente por causa da pecuária. Do início do
ano até 9 de outubro, Lábrea havia registrado 1.601 focos de
incêndio, ou 16,4% das ocorrências no Amazonas nesse período,
segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais). É o
município com mais queimadas neste Estado e o sexto do país.
O
fogo é usado principalmente para facilitar a substituição de
florestas por pastagens e para “limpar” áreas já abertas. Nos
dias em que a reportagem visitou Lábrea, no final de setembro, havia
esses dois tipos de queimada ao longo da Transamazônica.
Somente
entre 2014 e o ano passado, foram desmatados 242,6 km² no município,
o equivalente a 153 parques Ibirapuera –aumento de 79% em relação
ao período anterior. O levantamento é do Imazon (Instituto do Homem
e Meio Ambiente da Amazônia) feito a pedido da Folha, a
partir de dados do Inpe.
Juntos,
Lábrea, Manicoré e Apuí –outros dois municípios do sul do
Amazonas também cortados pela Transamazônica– respondem por 59%
do desmatamento do Estado nesse período.
A
região é uma das que mais contribuíam para o aumento de 24% na
taxa anual de desmatamento da Amazônia no período 2014-2015. É o
maior avanço desde 2011.
Pecuarista,
Bode Preto nega responsabilidade pelos números ruins. Ele alega que
comprou as fazendas já formadas –incluindo uma área cujo pasto
beira o rio Mari, desrespeitando a mata ciliar– e aponta a distante
região sul de Lábrea como o foco das queimadas e desmatamento.
O
irmão Bode Augusto operava uma serraria, mas afirma que era em
pequena escala e que fechou após receber multas sucessivas do Ibama,
que considera abusivas. Ele admite que usava madeira ilegal, mas
disse que empregava “14 pais de família”.
As
imagens de satélite mostram que, de fato, é no distante sul de
Lábrea, e não no entorno da cidade, que o desmatamento se
concentra, embora haja muitos focos ao longo da Transamazônica.
Lábrea é o décimo maior município do país em área –são 68
mil km², pouco menor do que os Estados do Rio de Janeiro e de
Alagoas somados. No imenso território, há até índios isolados.
Matéria
na íntegra através do site:
http://arte.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/transamazonica/#ponto-de-partida
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