Monastério na Etiópia guarda evangelhos raros do século 5
Monastério na Etiópia guarda evangelhos raros do século 5
Protegidos por cerca de cem monges, textos são conservados de forma precária e levantam questão sobre posse patrimônio da humanidade
As
páginas estão ressecadas e uma poeira de pergaminho cai em forma de
minúsculos flocos. Embrulhado num xale branco, com o livro aberto
sobre os joelhos, o padre Teklehaimanot vira lentamente as folhas,
para que as ligaduras de couro não as cortem. O texto ficou meio
desbotado, mas as ilustrações, brilhantes, de ricos tons azuis e
púrpura, contrastam com a obscuridade do mosteiro. No chão está o
tecido em que os volumes são envoltos. Ao lado, as caixas nas quais
são guardados. Aqui repousa há séculos, até onde a memória dos
monges alcança, um dos mais maiores tesouros religiosos do mundo.
Os Evangelhos de Garima, guardados no monastério de Abba Garima, na Etiópia |
Os
Evangelhos de Garima não são fáceis de se ver. Os manuscritos
cristão ricos em iluminuras – com cerca de 1.500 anos, talvez os
mais antigos do gênero ainda existentes – pertencem ao mosteiro de
Abba Garima, construído sobre um remoto afloramento rochoso na
região de Tigray, norte da Etiópia. Os cem monges do mosteiro
guardam os dois volumes numa espécie de fortaleza circular próxima
à igreja. Ao pé de um declive, logo atrás do claustro, um pequeno
museu, construído há seis anos com ajuda do governo francês, que
está quase vazio. Às vezes os evangelhos são exibidos ali,
rapidamente, antes de os monges os levarem de volta para seu
costumeiro abrigo. Pesquisadores e visitantes são ocasionalmente
admitidos. Turistas não são bem-vindos.
A
permanente discussão sobre onde e como os evangelhos devem ser
mantidos, e quem pode vê-los, é fortemente local, e no entanto,
simbólica. Ela gira em torno de antigas tradições de um mosteiro
isolado, mas exemplifica o ceticismo sobre programas ocidentais de
proteção ao patrimônio cultural. A discussão envolve ritos
sagrados rivais e pesquisadores, levantando questões sobre os
objetivos da preservação e sobre a propriedade final da cultura de
um país.
Segundo
a lenda, os Evangelhos – estritos na antiga língua ge’ez – são
obra de Abba (padre) Garima, um príncipe bizantino que fundou o
mosteiro no século 5 ou início do 6. Os monges os protegeram de
invasores muçulmanos, exércitos coloniais e fogo. O mosteiro foi
devastado ou saqueado pelo menos quatro vezes, a última por forças
de ocupação italianas em 1936, sendo reconstruído após cada
ataque.
É
improvável que os Evangelhos alguma vez tenham deixado aqueles
muros. Eles não eram conhecidos no mundo exterior até que Beatrice
Playne, uma artista inglesa, visitou o mosteiro no fim dos anos 1940.
Como mulheres não são admitidas no interior do complexo, os
manuscritos precisaram ser levados até ela. Em anos recentes,
ressurgiu o interesse de estudiosos por eles. Um trabalho decisivo de
restauração foi realizado pelo Fundo do Patrimônio Etíope, uma
entidade assistencial britânica, em meados dos anos 2000. Acadêmicos
estrangeiros visitam Abba Grima em busca de pistas que os evangelhos
possam dar sobre os primórdios da história do cristianismo
oriental.
A
desconfiança dos monges continua profunda. Uma longa história de
pilhagem cultural marca a história da Etiópia. Relíquias saqueadas
pelos ingleses em 1867-68 serão exibidas, em abril, no Museu
Victoria e Albert, em Londres, apesar dos permanentes pedidos de
restituição. Durante a ocupação italiana, muitos artefatos foram
levados de igrejas etíopes para museus em Roma e depois
desapareceram. Recentemente houve um aumento de furtos menores,
estimulados por um florescente mercado negro de antiguidades etíopes.
“As pessoas vêm aqui com autorização do governo e acabam se
desviando do objetivo inicial”, diz cautelosamente o padre
Teklehaimanot.
A
desconfiança dos monges reflete uma prevenção mais ampla da Igreja
Ortodoxa Etíope contra pesquisadores. Tornou-se quase impossível
estudar manuscritos. Fotografá-los também é proibido. Tentativas
de bibliotecas etíopes e europeias de digitalizar centenas de
milhares de códices terminaram abruptamente, quando não,
asperamente. Para algumas fontes da Igreja Ortodoxa, a falta de
confiança faz parte da preocupação em preservar autoridade: o
controle dos textos dá poder a quem o detém; compartilhá-los,
dilui esse poder. “Há um sentimento de que se os manuscritos se
tornarem muito acessíveis a igreja terá seus segredos violados”,
disse Michael Gervers, historiador da Universidade de Toronto. Para
alguns, digitalização é sinônimo de roubo.
Levar
objetos sagrados para lugares profanos causa particular ansiedade
entre religiosos. “Os museus necessariamente dão outro contexto às
peças exibidas”, diz Michael Di Giovine, autor de The
Heritage-scape, sobre patrimônio cultural e turismo. Na fé católica
e na ortodoxa, assinala o autor, a veneração de relíquias com
frequência envolve tocar, beijar, incensar e rezar alto, “coisas
que simplesmente não podem ser feitas num museu ocidental”. Ele
cita o caso de São Pio de Pietrelcina, na Itália, cujo corpo foi
exumado em 2008 e exibido num caixão de vidro. Peregrinos
descontentes processaram autoridades da Igreja por usufruírem lucro
do santuário. O padre Columba Stewart, monge beneditino americano
que digitalizou em 2013 os Evangelhos de Garima para o Hill Museum
and Manuscript Library, observou uma preocupação semelhante na
Etiópia – a de que exibir manuscritos numa estante envidraçada os
distancia de seu papel em cerimônias religiosas.
Do
outro lado, pesquisadores preocupam-se com o futuro dos evangelhos em
sua localização atual. Quando o historiador da arte francês
Jacques Mercier visitou o mosteiro, em 1995, o segundo volume dos
Evangelhos havia aparentemente desaparecido (reapareceu depois). À
medida que os guardiães se inteiram de seu valor financeiro, a
tentação do lucro aumenta. Alguns monges são subornados para
mostrar os pergaminhos, pondo-os em risco. “Cada vez que os livros
são abertos, as bordas se esfarelam”, diz Gervers. “Assim, pouco
a pouco eles vão se desfazendo.”
No
fundo de tudo está uma discordância básica sobre o direito ao
patrimônio. A quem, afinal, pertencem preciosidades como os
Evangelhos de Garima? Pelo menos desde os anos 1960, as ideias
ocidentais de conservação enfatizam que a herança cultural da
humanidade é de todos e o acesso a ela deve ser universal. Essa
visão substitui o princípio de posse pelo de zeladoria. Gervers
sugere que a Unesco deve intervir para proteger os Evangelhos. Outros
acham que eles devem ter mantidos temporariamente sob custódia pelas
autoridades eclesiásticas. “Não se trata apenas de a quem
pertencem, mas se devem estar disponíveis para o público
examiná-los e estudá-los”, diz Gethaun Girma, intelectual etíope.
“Os mosteiros não têm os recursos – conhecimento, dinheiro,
organização – para possibilitar isso.”
O
isolamento do Abba Garima ajudou a manter durante séculos os
manuscritos em segurança. O santuário dos Evangelhos pode ser
atravancado e sujo, mas é convenientemente seco e bem protegido.
“Muitas relíquias se perderam ao longo da história, mas os monges
conservam esse tesouro”, diz o sacerdote e pesquisador Daniel
Seife-Michael, da Igreja Ortodoxa Etíope. “Eles morreriam para
protegê-lo.”
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